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sexta-feira, 4 de outubro de 2013

A Constituição perdeu-se nos arquivos de São Bento?





Como entender os “chumbos” do Tribunal Constitucional dia sim, dia não? A Constituição perdeu-se nos arquivos de São Bento? Esqueceram-se de a ler? Ou já nem será preciso? 
O que se passa?

Uma possível resposta a partir de uma leitura do  Estado de exceção , um livro indispensável de Giorgio Agamben.



“(…) mas as palavras que concluem o livro soam ainda mais grotescas: 
"Nenhum sacrifício pela nossa democracia é demasiado grande, 
menos ainda o sacrifício temporário da própria democracia.
(Giorgio Agamben, Estado de exceção)


O conjunto de recomposições que desde os anos 80 vêm produzindo efeitos na sociedade global contemporânea, têm forçosamente que se repercutir na relação do capitalismo com o sistema político.

A dívida pública, uma realidade económico-política com que muitos países, de forma dramática, se confrontam, tem necessariamente fortes consequências e implicações políticas devido ao facto dos governos considerarem que o seu pagamento deve “inevitavelmente” gerar políticas orçamentais austeritárias, pressões fiscais (sobre os rendimentos mais baixos) e cortes nos gastos, sobretudo sociais, considerados “improdutivos”, e em decorrência disso paralisar as despesas públicas. Paralelamente, essa política tem vindo também a justificar a retirada e a “desresponsabilização” do Estado de algumas áreas, favorecendo parcerias e privatizações.

A dívida, e mais especificamente a dificuldade (entenda-se a impossibilidade) de a pagar cria na sociedade um sentimento difuso de “emergência” económica, um sentimento de que alguma coisa deve ser feita, ou melhor, de que tudo deve ser feito para pagar a dívida. Como se vivêssemos num tempo não de “normalidade” mas de exceção, que suspende a garantia dos direitos constitucionais. Tanto os políticos como os “mercados” capitalizam o medo nebuloso que satura o ambiente existencial da sociedade, mobilizando fantasmas (a “perda de credibilidade” e a “desonra”) e soluções (o “consenso” e a “salvação nacional”) numa produção simbólica do inimigo. Não é de admirar que o medo, o instrumento que motivou o contrato social hobbesiano do Leviatã, reapareça explicitamente. (Para Hobbes o “estado de natureza”, anterior ao aparecimento do Estado, é um estado de guerra”, ao contrário de Locke, por exemplo, que reconhece já no “estado de natureza” a existência dos direitos naturais.)

Em situações de crise, o carater “emergencial” do estado excecional de “assistência” tende a substituir uma lógica política da representação por uma lógica funcional, isto é, por uma regulação técnica “flexível” do poder político e das relações sociais. De que outra forma se conseguiriam aplicar “reformas” austeritárias?

Em abril deste ano Bill Gross, que gere o maior fundo de obrigações do mundo (a PIMCO Fund, com quase 290 mil milhões de dólares) afirmou que “foi um erro pensar que os mercados obrigacionistas iam exigir aos governos que aplicassem medidas orçamentais severas de austeridade. Os investidores em obrigações querem tanto crescimento económico como os de ações, na medida em que demasiada austeridade leva à recessão ou estagnação." (aqui)

O que é admirável nesta afirmação não é o facto dos “investidores querem crescimento económico” (até porque sem isso os Estados não conseguem pagar a dívida), o que é verdadeiramente esclarecedor é a clara referência ao facto dos mercados obrigacionistas “exigirem aos governos que apliquem medidas de austeridade”.

A nova forma de governo técnico, aquele que terá que atender às “exigências dos CEOs das PIMCOs”, terá que assentar numa recentralização da administração do dispositivo de governação estatal, senão mesmo de uma privatização da governabilidade, que deixa de fora a esfera representativa, a democracia dos cidadãos, numa atuação bastante próxima dos “mercados” e, como tal, muito afastada das fontes tradicionais de legitimação do Estado moderno.
Aliás, o capitalismo contemporâneo, enquanto uma nova ordem imperial caracteriza-se, primeiramente, pela ausência de fronteiras (o poder exercido pelo Império” não tem limites) e, em segundo lugar, por não se apresentar como conquista histórica, mas sim como uma ordem que suspende a História. (Hard Michael e Negri, Antonio (2001). Império, Rio de Janeiro, São Paulo: Editora Record, 3ª edição, p. 14)


Segundo Agamben, “a origem do instituto do “estado de sítio” encontra-se no decreto de 8 de julho de 1791 da Assembleia Constituinte Francesa, que distinguia entre état de paix (a autoridade militar e a autoridade civil agem cada uma na sua própria esfera), état de guerre (a autoridade civil tem que agir em consonância com a autoridade militar), e état de siége (a autoridade militar assume o comando de todas as funções de que a autoridade civil é investida, para a manutenção da ordem interna) (Agamben, 2004, p. 16).
O “estado de sítio” nasce, portanto, vinculado à questão da existência da guerra e das consequências dessa situação para a organização social, mas progressivamente vai-se emancipando dessa situação inicial “para ser usado como medida extraordinária de polícia em caso de desordens e sublevações internas, passando, assim, de efetivo ou militar a fictício ou político” (idem) Surge assim o estado de exceção.

 “Assumo sem hesitar o comando do grande exército do nosso povo para conduzir, com disciplina, o ataque aos nossos problemas comuns (...). Pedirei ao Congresso o único instrumento que me resta para enfrentar a crise: amplos poderes executivos para travar uma guerra contra a emergência, poderes tão amplos quanto os que me seriam atribuídos se fôssemos invadidos por um inimigo externo”.
Estas palavras, retomadas por Agamben (idem, p. 37), foram pronunciadas por Franklin Roosevelt, presidente dos Estados Unidos, e culminaram no National Recovery Act, de 1933, que lhe delegou um poder ilimitado de regulamentação e controlo sobre todos os aspetos da vida económica do país, no rescaldo da crise de 1929.

Segundo Agamben, o paralelismo entre emergência militar e emergência económica, evidente no discurso de Roosevelt, é um traço que irá caracterizar a política durante todo o século XX. E, mais uma vez, o estado de exceção, que deriva da necessidade de declarar uma “guerra à emergência”, neste caso à emergência económica, vai atuar, não no sentido de solucionar a emergência que supostamente gerou o estado de exceção, mas, ao contrário, produzindo uma situação na qual a emergência se torna a regra e em que já não se consegue distinguir entre normalidade e emergência.
“Sob a pressão do paradigma do estado de exceção, é toda a vida político-constitucional das sociedades ocidentais que, progressivamente, começa a assumir uma nova forma que, talvez, só hoje tenha atingido seu pleno desenvolvimento.” (idem, p. 27).
O estado de exceção representa a possibilidade do poder executivo deter poderes superiores, acima da própria Constituição, podendo desrespeitar direitos fundamentais. Essa situação, característica das ditaduras, também se manifesta, e cada vez mais, em democracias, com a ampliação de poderes do executivo. “No nosso estudo do estado de exceção, encontramos inúmeros exemplos da confusão entre atos do poder executivo e atos do poder legislativo; tal confusão define, como vimos, uma das características essenciais do estado de exceção. (idem, p. 61)

Dificilmente, Agamben poderia ser mais explícito do que quando afirma com absoluta nitidez estas palavras “(…) o princípio democrático da divisão dos poderes hoje está caduco e o poder executivo absorveu de facto, ao menos em parte, o poder legislativo. O Parlamento não é mais o órgão soberano a quem compete o poder exclusivo de obrigar os cidadãos pela lei: ele limita-se a ratificar os decretos emanados do poder executivo. Em sentido técnico, a República não é mais parlamentar e, sim, governamental. E é significativo que semelhante transformação da ordem constitucional, que hoje ocorre em graus diversos em todas as democracias ocidentais, apesar de bem conhecida pelos juristas e pelos políticos, permaneça totalmente despercebida por parte dos cidadãos. Exatamente no momento em que gostaria de dar lições de democracia a culturas e a tradições diferentes, a cultura política do Ocidente não se dá conta de haver perdido por inteiro os princípios que a fundam.” (idem, p. 32-3)

O estado de exceção é sempre definido em virtude de uma necessidade impreterível. A definição de Agamben sobre o papel da necessidade também é bastante significativa: a necessidade encontra-se acima da própria lei e legitima-se exatamente por estar acima da legitimidade. “Mais do que tornar lícito o ilícito, a necessidade age aqui como uma justificativa para uma transgressão num caso específico por meio de uma exceção.” (idem, p. 40-1)

É aqui que devemos perguntar: necessidade de quem?

A lógica da crise é produzir uma regulação técnica das relações sociais num estado de emergência. As medidas de “austeridade” são usadas como “medidas emergenciais” porque permitem fazer “reformas” que não se podem fazer em tempos normais: reduzir o Estado, comprimir salários, atacar os direitos do trabalho.

O regime de emergência não têm por finalidade resolver o problema, a sua verdadeira finalidade é manter a situação de emergência, não é ultrapassá-la. Analogamente, a dívida pública não é para ser paga, nunca poderá ser paga, logo o estado de emergência também não pode acabar.

Portanto, o estado de emergência mostra-se como uma necessidade do capitalismo, necessidade que tende a transformar a exceção em norma. O estado de emergência económico que vivemos é condição de possibilidade para a nossa relação de total subserviência ao poder  financeiro.



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